Compartilhe em:
As anemias representam um grupo heterogêneo de condições hematológicas que afetam milhões de pessoas em todo o mundo. Entre elas, as hemoglobinopatias e as talassemias estão entre as causas mais comuns de anemia hereditária. O diagnóstico diferencial dessas patologias é essencial para um tratamento adequado e para o aconselhamento genético de pacientes e familiares.
Nos últimos anos, a Cromatografia Líquida de Alta Eficiência (HPLC) tem se consolidado como uma das principais ferramentas para a caracterização das hemoglobinas, permitindo a separação, identificação e quantificação de variantes de hemoglobina de forma rápida e precisa. Este artigo explora o papel do HPLC na investigação das anemias, destacando suas aplicações e métodos analíticos.
1. Fundamentos da Cromatografia Líquida de Alta Eficiência (HPLC)
O HPLC é uma técnica analítica baseada na separação de compostos por interação diferencial com uma fase estacionária e uma fase móvel, sendo amplamente utilizada para a análise de biomoléculas, incluindo proteínas e pigmentos sanguíneos.
No estudo das anemias, o HPLC é aplicado principalmente na separação das frações de hemoglobina presentes no sangue. Entre os métodos cromatográficos disponíveis, destacam-se:
HPLC de Troca Iônica: Utiliza colunas de resina carregadas para separar as frações de hemoglobina com base na carga elétrica das moléculas.
HPLC de Fase Reversa: Emprega colunas com fase estacionária hidrofóbica para separação das hemoglobinas com base na polaridade.
Os detectores mais utilizados incluem:
Detector de Absorbância no Ultravioleta-Visível (UV-Vis): Opera geralmente em 415 nm, detectando a absorção da hemoglobina.
Detector de Diodo (DAD): Permite a análise espectral de diferentes variantes de hemoglobina com maior seletividade.
O HPLC automatizado utilizado em laboratórios clínicos geralmente emprega métodos rápidos de troca iônica acoplados a detecção por UV-Vis, garantindo alta sensibilidade e reprodutibilidade na análise das frações de hemoglobina.
2. Aplicações do HPLC na Investigação das Anemias
O HPLC se destaca na análise das hemoglobinas, oferecendo alta resolução e precisão na detecção de variantes. As principais aplicações incluem:
2.1. Diagnóstico de Hemoglobinopatias
O HPLC é amplamente utilizado para identificar variantes anormais de hemoglobina, como:
Hemoglobina S: Presente na anemia falciforme.
Hemoglobina C, D, E: Comuns em algumas populações específicas.
Hemoglobinas instáveis: Associadas a anemias hemolíticas hereditárias.
Método utilizado: HPLC de troca iônica com detecção UV a 415 nm. Essa abordagem permite a separação das frações normais e patológicas em tempos de retenção específicos, facilitando a identificação das variantes.
2.2. Detecção e Quantificação da Hemoglobina Fetal (Hb F)
A presença de níveis elevados de Hb F em adultos pode indicar distúrbios hematológicos, como talassemia beta ou síndromes mielodisplásicas.
Método utilizado: HPLC de fase reversa ou troca iônica, com detecção em 415 nm. A Hb F apresenta um tempo de retenção característico, permitindo quantificação precisa.
2.3. Diferenciação entre Talassemias e Anemia Ferropriva
A dosagem de Hb A2 é essencial para o diagnóstico da talassemia beta, pois pacientes com essa condição geralmente apresentam níveis aumentados dessa fração.
Método utilizado: HPLC de troca iônica, pois fornece separação eficaz entre Hb A, Hb A2 e Hb F. Níveis de Hb A2 superiores a 3,5% são indicativos de talassemia beta.
2.4. Monitoramento de Pacientes Transfundidos
Em pacientes que recebem transfusões sanguíneas frequentes, como aqueles com talassemia major ou anemia falciforme, o HPLC ajuda no acompanhamento da composição das hemoglobinas, identificando a persistência de hemoglobinas anormais ou alterações no perfil hemoglobínico.
Método utilizado: HPLC de troca iônica, com separação detalhada das frações de hemoglobina e quantificação dos níveis de hemoglobinas normais e patológicas.
2.5. Impacto das Variantes da Hemoglobina na Dosagem de HbA1c
A quantificação da hemoglobina glicada (HbA1c) por HPLC é um método amplamente utilizado no monitoramento do diabetes. No entanto, variantes de hemoglobina podem interferir na medição da HbA1c, resultando em leituras incorretas.
Método utilizado: HPLC de troca catiônica com detecção UV. O método é capaz de distinguir Hb A1c verdadeira de interferências causadas por variantes como Hb S, Hb C e Hb E.
3. Discussão das Técnicas e Melhor Escolha Conforme a Aplicação
3.1. Para Diagnóstico de Hemoglobinopatias (Hb S, Hb C, Hb E, Hb D, etc.)
Melhor opção: HPLC de troca iônica ou LC-MS/MS para variantes raras.
Alternativa: Eletroforese capilar pode ser usada para triagem inicial, mas o HPLC oferece maior resolução e precisão quantitativa.
3.2. Para Diferenciação entre Talassemias e Anemia Ferropriva
Melhor opção: HPLC de troca iônica para quantificação de Hb A2 e Hb F.
Alternativa: Eletroforese alcalina pode ser utilizada, mas tem menor precisão quantitativa.
3.3. Para Monitoramento de Pacientes Transfundidos
Melhor opção: HPLC de troca iônica devido à sua capacidade de quantificação de diferentes frações de hemoglobina.
Alternativa: Espectrometria de massas (LC-MS/MS) pode ser usada para diferenciação de hemoglobinas exógenas em casos complexos.
3.4. Para Avaliação da Hemoglobina Glicada (HbA1c) e Impacto de Variantes
Melhor opção: HPLC de troca catiônica, que permite separar HbA1c verdadeira de interferentes.
Alternativa: Imunoturbidimetria pode ser usada, mas não distingue variantes de hemoglobina que interferem na medição.
4. Interpretação dos Resultados Cromatográficos
Os resultados obtidos pelo HPLC são apresentados como cromatogramas, onde cada fração de hemoglobina aparece em um tempo de retenção específico. A interpretação correta desses cromatogramas é essencial para um diagnóstico preciso.
4.1. Padrões Cromatográficos Comuns
Perfil normal: Predominância de Hb A (95-98%), com pequenas quantidades de Hb A2 (1,5-3,5%) e Hb F (<1%).
Anemia falciforme: Presença de Hb S, com redução ou ausência de Hb A.
Talassemia beta: Aumento da Hb A2 (>3,5%), indicando um defeito na produção da globina beta.
Hemoglobina instável: Picos inesperados no cromatograma, indicando degradação anormal da hemoglobina.
5. Esclarecimento sobre o Uso de HPLC e Eletroforese
Tradicionalmente, a eletroforese de hemoglobina (em gel ou capilar) foi um dos principais métodos usados para a separação de frações de hemoglobina.
No entanto, com os avanços tecnológicos, o HPLC se tornou um método preferido em muitos laboratórios, pois oferece melhor separação, quantificação mais precisa e maior automação.
Dessa forma, muitos laboratórios substituíram a eletroforese convencional pelo HPLC para análise de hemoglobinas, e por isso alguns documentos se referem ao HPLC como "eletroforese por HPLC", o que pode gerar confusão.
Conclusão
O HPLC se consolidou como uma ferramenta indispensável no diagnóstico das anemias, permitindo a identificação precisa de hemoglobinopatias, a quantificação de frações anômalas e o monitoramento de condições hematológicas. Sua alta sensibilidade e reprodutibilidade fazem dele um método de escolha para laboratórios clínicos, contribuindo significativamente para o diagnóstico precoce e o manejo adequado das doenças hematológicas.
A evolução contínua da cromatografia aplicada à hematologia abre novas perspectivas para o diagnóstico laboratorial, reforçando a necessidade de capacitação técnica e atualização constante dos profissionais da área para cromatografia.
Referências Bibliográficas
Brugnara, C., & Oski, F. A. (2011). "Laboratory Evaluation of Hemoglobinopathies and Thalassemias: Routine Methods and Recent Developments." Clinical Chemistry, 57(2), 215-225.
Sujatha, S., & Pai, R. M. (2015). "High-Performance Liquid Chromatography in Hemoglobinopathy Detection: Diagnostic Utility and Interpretation." International Journal of Hematology, 102(4), 379-385.
Wild, B. J., & Bain, B. J. (2016). "Hemoglobin Analysis by HPLC: Best Practices and Clinical Applications." American Journal of Hematology, 91(9), 931-939.
Riou, J., Godart, C., & Mathis, M. (2017). "Automated HPLC for Hemoglobin Analysis: A Review of Recent Advances." Journal of Clinical Laboratory Analysis, 31(2), e22045.
Weatherall, D. J., & Clegg, J. B. (2018). "The Thalassemia Syndromes." Oxford University Press, 5ª edição.
National Committee for Clinical Laboratory Standards (NCCLS). (2019). "Guidelines for Hemoglobinopathies Testing in Clinical Laboratories." Clinical and Laboratory Standards Institute, 29(15).
Edwin Bueno é engenheiro químico com mais de 13 anos de experiência em laboratórios analíticos e ênfase em técnicas cromatograficas, atuando em centenas de projetos de alta complexidade voltados ao controle de qualidade, desenvolvimento de métodos e conformidade regulatória. É fundador e diretor técnico do laboratório analítico Atual Labs, reconhecido por sua atuação ágil nos setores de nutrição e saúde animal.
Além de sua atuação técnica, Edwin é consultor de laboratórios e indústrias, contribuindo na resolução de problemas analíticos, otimização de processos, estruturação de equipes técnicas, expansão laboratorial e gestão, implementação de boas práticas que asseguram qualidade, agilidade e robustez nos resultados.





